Beco, A Ópera do Lixo – Ponto de Partida – 40 anos
- sob o olhar do ator Lido Loschi -
“Quem tem amigos na vida está mais perto de ter Deus”. Fernando Brant.
Se o espetáculo “Drummond” foi um divisor de águas na vida do Ponto de Partida, Beco foi um divisor na minha vida. A Regina deu o mote. Um grupo de mendigos, moradores de um beco, todos com uma ligação forte com a arte. Ex- palhaços de circo, engolidores de fogo, cantores de rua, bailarinos, enfim, artistas derrotados pelo tempo. Os fundos desse beco, davam para a casa de uma senhora, solitária, apaixonada por musicais da Broadway, que para preencher suas noites vazias, virava sua televisão para o beco assistir junto com ela, os poderosos musicais. Não vou contar aqui o desenrolar da história, vai ficar longo. Distribuídos os papéis, ainda sem texto, essa é uma das formas do Ponto de Partida trabalhar. Dá-se o mote e tudo vai crescendo do nada. Meu personagem seria um ex-palhaço de circo que traz em suas memórias, o lugar onde foi criado, no interior, na roça. Deitei e rolei. Tinha tudo a ver comigo. Busquei meus Chaplins, meus Mazzaropis, minha herança de campos e milharais e inventei o personagem. Fulgêncio – o que fulgura, o que brilha. Depois de nossas improvisações, nossos textos foram se misturando aos da Regina e logo a peça já estava pronta. Ainda não. Faltavam os temperos. “Vai ser um musical. Quero Gilvan de Oliveira no violão, Álvaro Apocalypse nos cenários e figurinos, e quero mais, música original”.
Não acreditei quando apresentei uma cena para Fernando Brant. Isso mesmo, aquele poeta que marcou toda minha vida, com as mais belas canções, estava ali, assistindo à minha performance, criando coisas para eu cantar e que ficariam eternizadas. Conhecer Fernando Brant não fazia parte dos planos desse mortal. Mas não para por aí; Marcos Leite, do “Garganta Profunda”, veio fazer os arranjos vocais, e na época, Aurélio de Simoni, o papa da luz, veio iluminar o Beco. Eu estava no meio de uma grande produção, sem entender muito bem o que estava acontecendo.
Mas como viabilizar tudo isso? Era o ano de 1990, em plena crise do governo Collor. As produções artísticas de todo país, paralisadas. O meio artístico desacreditado. Ivanèe Bertola soltou sua máxima: “Em época de crise ou você chora ou vende lenço”. E assim foi criada a “Gincana Beco”, para arrecadar dinheiro para tamanha empreitada. O grupo se dividiu em duas equipes. Equipe de “Oz” e “Nóis é Nóis”. A partir daí viramos inimigos, uma equipe da outra. Tudo regido por Ivanèe e Regina, que nos instigavam e incrementavam a disputa.
Envolvemos toda a cidade em prol de uma causa, “o teatro”. Convidamos alunos, amigos, simpatizantes do grupo para entrarem para as equipes, e nesse momento, o grupo já era toda uma cidade.
Vendemos adesivos, bônus para a estreia do espetáculo, fizemos barraca na festa das rosas. Artistas faziam shows e nos cediam a bilheteria. Vendíamos nossos lenços. Percebi então, que o grupo era muito mais que um grupo de teatro. Era um mobilizador, um movimento cultural. Dois meses depois, com a vitória da equipe “Nóis é Nóis”, que não era a minha, estávamos com uma quantia astronômica em mãos, e várias sessões do Beco, esgotadas.
Antes do Beco sair pelo mundo, alguém perguntou para a Regina: você acha mesmo que o Beco tem chance de fazer sucesso nos grandes centros?
Convicta, ela respondeu: “Não quero fazer sucesso, quero fazer história”.
O Beco fez uma carreira esplendorosa. Impossível contar tim-tim por tim-tim.
Não sei o que foi mais importante. Se foram as centenas de escolas que invadimos, por inúmeras cidades, divulgando o espetáculo; ou a temporada no Rio, no CCBB; ou São Paulo, no teatro Castro Alves; ou em Portugal, onde adaptamos o Beco para ser apresentado num castelo medieval; ou em Montevidéu, onde saíamos pelas ruas com os personagens, cantando e conquistando um público que lotou o teatro em todos os dias da temporada.
Emengarda, Quereca, Fulgêncio, Pé de Porco, Maria Bomba, Lisa, Lola, Belle, André, Danton, Pedrinho, personagens que brilharam com seus sonhos escondidos. “O Beco está é dentro de nós”.
O Beco encantou a todos por onde passou.
A crítica, controversa, admitiu que se inaugurava, com ele, uma linguagem para o musical brasileiro.
Na pele do Fulgêncio, viajei pelo interior do mundo de cada um. Instigando sonhos. Fazendo história.