{Processos} Especial para os Pais!
“Processos” é um projeto do Ponto de Partida em que os atores do grupo fazem leituras dramáticas todas as quintas no Café da Estação! E a partir de agora, estes textos estarão aqui no blog também! Na última quinta fizemos uma homenagem aos Pais.
{ Bartolomeu Campos de Queirós - Lido por Érica Elke }
O pai, homem calado, coçava sempre a cabeça, por longo tempo, como se estivesse fazendo carinhos no pensamento. Trabalhava muito e sem descanso. Havia sempre um arame para esticar, uma galinha para cortar as asas, uma tábua no curral merecendo mais um prego, uma planta carecendo de estaca para ganhar em altura. Aos domingos ele se assentava debaixo da sombra de uma árvore e ficava com o tempo. O tempo lhe presenteava com o silêncio.
Falava pouco. Ás vezes contava curtas histórias. A da galinha que entrou debaixo do caminhão e eu não tive como não matá-la. Os pintinhos ficaram piando em volta da mãe morta. Sem mais o que fazer, eu juntei os pintinhos e os levei para casa. Hoje, quando dirijo, não tenho medo de pontes, valas, mata-burros. Mas sendo galinha com pintos eu uso os freios.
Retomava do silêncio, abria o canivete muito amolado, picava o fumo, lambia a palha, enrolava o cigarro e fumava. Antônio não perguntava. O pai não respondia. Era um silêncio muito cheio de pesares.
As irmãs de Antônio, que já se vestiam de anjos nas coroações da capela e ganhavam cartuchos com amêndoas, elas ficavam atrás do pai, penteando e despenteando seus cabelos, partindo e repartindo os fios. Ele devia gostar do carinho, pois olhava para os lados sem mexer com a cabeça, para não sair do jogo.
De tempo em tempo ele viajava por mais dias. A mãe amarrava as portas e janelas mais cedo, encostando machados e bacias. O medo lembrava que o pai estava ausente. Quando voltava, ele trazia pão com salame embrulhado em papel pardo. Naquele lugar, onde biscoitos e bolos eram freqüentes, pão era notícia de outro mundo. E o salame, vermelho, cortado em rodelas, com meias luas de pimenta-do-reino, tinha gosto do amor que o pai revelava nos gestos, mas não dizia na voz.
{ Ana Clara Castro - Lido por Ana Clara Castro }
A gente gostava mesmo era de procurar gnomos. Foram muitas expedições bem sucedidas em todo canto mais distante da cidade. Uma caneca perto da cachoeira? Só podia ser dos gnomos.
- Vi uma touca vermelha ali, você viu?
- Lá? Vi uma azul! Xi, pai, passou.
- Como será que ele se chamava?
- Gnomo, uai!
Um quiosque bem pequenininho no meio do nada? Casa de gnomo. Isso era final de semana. Mas todos os dias tinha história pra dormir. Bolinha, Tamborete, a casa pequenininha da mulher pequenininha. E naquela cama cabiam todos os bichos, medos e florestas que a gente imaginava. Meu pai assobiava atrás da porta, eram as histórias todas chegando.
Ele me obrigava a escovar dente, tomar café da manhã e até a comer mamão. Mas criou um mundo inteiro dentro de mim.
{ Lido Loschi – Lido por Lido Loschi }
A plantação de batatas era um infinito verde esparramado na pequena várzea. Na época da colheita, o verde fundia-se com a terra e o amarelo das lisas e viçosas batatas. Chegávamos da aula e já tinha o recado: – É pros meninos descerem e ajudar na catança das batatas miúdas. Para fugir do trabalho nosso álibi eram as tarefas da escola. Fazíamos o exercício de história, geografia, português, até chegar na matemática. Ihh, melhor ir catar batatas! Fechávamos os livros e descíamos.
O cheiro da terra úmida, o movimento, o vozerio animado dos homens trabalhando, o barulho das enxadas escalavrando o chão sob o sol ardente escalavrava também nossa fantasia. As batatas grandes viravam pedras, tinham força para acertar qualquer passarinho, ou qualquer outro animal que não respeitasse a distância. As miudinhas viravam bolas de gude, e o serviço, nunca que acabava. “São tantas coisinhas miúdas, roendo, comendo, arrasando aos poucos o nosso ideal”. A música de Gonzaguinha servia de paródia para, divertidamente, passar o tempo e encurtar aquelas penosas horas. No fim da tarde voltávamos pra casa. E as batatas estavam lá, na sopa, na salada, no caldo, na travessa, na frigideira, em pesadelos nos nossos sonhos. Os sacos de batata no barracão exalavam um cheiro peculiar e garantiam trabalho, mesa farta e despensa cheia.
Mas as batatas caíram de preço. Era preciso buscar novas culturas. Aí veio o tomate. O vizinho plantou e ficou rico. Ouvíamos falar dos magnatas do tomate. Meu pai não teve dúvida. Vamos ao tomate! Ah, o que era o trabalho desses homens! Meses depois o tomatal estava erguido. Era grande a labuta. Amarrar, aguar, capinar. As mãos ficavam pretas com a nódoa das folhas e dos caules, mas sonhávamos com roupas novas, presentes de natal, carro novo, até férias na praia. Meu pai prometeu! Todos ficaram ricos com o tomate. Nós também ficaríamos.
O mormaço e as nuvens prometiam chuva. Ôba! Hoje não precisa aguar, a chuva é certa! Mas o céu empretecera demais. Os relâmpagos anunciavam tempestade. A chuva caiu forte. Eu voltava da aula e tive que esperar passar o temporal escondido no posto perto do asfalto. A estradinha, de repente, ficou branca de granizo, toda salpicada de verde das folhas picadas das árvores, coisa linda de se ver! Cheguei em casa afundando o pé naquele gelo espraiado pelo terreiro, branco como um sonho. O mundo parecia um imenso frigorífico.
Meu pai chegou logo depois, fora ver o tomatal. Ficou um longo tempo parado na porta, como se as forças o tivessem abandonado e faltasse coragem para nos encarar. Tudo perdido! Ele falou. Um silêncio profundo fez a gente esquecer do susto da chuva, das férias na praia, dos presentes no fim do ano, da ilusão de ficar rico. A panela de pressão agitou-se no fogão, como um grito de revolta ou um consolo exalando esperanças. Meu pai sentou na mesa da cozinha com olhar cansado, o rosto magro, depauperado, e com a voz trancando lágrimas, tirou o chapéu e disse: O tomate até caiu de preço, bom mesmo é a batata baroa. Essa dá dinheiro!
{ Bartolomeu Campos de Queirós - Lido por Ana Alice }
Meu pai dirigia um caminhão muito grande e bonito. Viajava para longe, levando manteiga para as cidades que só produziam pão. Bom Destino tinha pão e manteiga. Passava dias distante e voltava trazendo uma carroceria cheia de notícias. Eu ficava impressionado como era grande o mundo do meu pai. Ele colocava um travesseiro sobre seus joelhos e me entregava o volante para eu dirigir. Naquele tempo eu não sabia nem frear meus pensamentos; tinha só duas pernas, imagina dirigir um caminhão com dez rodas. Depois, como seria possível eu aprender a dirigir, se minha alegria eram as paisagens! No caminhão havia dois espelhos dos lados, eu apreciava ver meu pai olhando para frente e correndo os olhos sobre o que estava atrás. Nesses momentos ele possuía muitos olhares.